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Envelhecer e não ter ninguém é o pior de dois mundos

Envelhecer é triste, estar só é triste, envelhecer e não ter ninguém é o pior de dois mundos.
Todos os dias os vejo e falo com eles, sim, os velhinhos, são às centenas! Muitos sentem-se perdidos, deslocados, com medo e sozinhos.
Pedem-me desculpa todas as vezes que molham os pés, ao usar o dispensador de álcool gel, porque não souberam usar “aquela coisa” e quando lhes digo, a brincar, para não se sentirem mal porque – “deram banho aos pés”, voltam a pedir desculpa como se tivessem cometido um erro crasso e que eu estou ali para os repreender.
Todos os dias brinco com eles, pergunto se foram sozinhos, como é que ali chegaram, se estão com medo de uma vacina e por breves segundos, que é o tempo que passo com a maioria, consigo ouvir as lágrimas que teimaram em esconder e digo que não têm nada a temer, que vai correr tudo bem e que levam a pica daqui a nada…
Temo eu acabar assim, sozinha numa qualquer fila em que não entendo nada, me doem as cicatrizes, ouço ou vejo mal, caminho como gado, seguindo as setas e com medo de perguntar algo com receio de ofender.
Todos os dias brinco com eles e digo que vão presos porque não trouxeram identificação, que de castigo por não me ouvirem que não levam vacina, chamo de marotas a todas as senhoras a quem pedi o cc e afinal ainda está perdido nas catacumbas da carteira e digo “foi da cumbersa, não me ligou nenhuma” e elas riem, digo aos maridos para entrarem com as mulheres não vá alguma perder-se para todo o sempre e vice versa “não a deixe fugir, você agarre-a que não arranja outra assim”, alguns não ouvem e ao invés de berrar chego mais perto e volto a repetir as vezes que forem preciso… ninguém tem paciência para os mais velhos e fazem gestos de despacha com as mãos, mas não se pode apressar quem já não tem vontade de ir, tem de se aliciar e esperar porque o ritmo e batimento da alma já não é o mesmo. Mas o lugar do outro é sempre o mais difícil.
Se for para ser assim, que eu morra antes de depender de um braço dado para fazer apenas uma fila, de uma voz calma que me diga “temos tempo”, de alguém que me diga “não tem mal não saberes, eu ajudo”, afinal, de que servem palavras amorosas quando em gestos, olhares e suspiros pedimos para despachar ou demos dois berros?
Que eu parta cedo, para não ter de engolir as lágrimas se um estranho me perguntar, sozinha, se não tinha ninguém para me acompanhar.
Por Lígia Macedo
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