Quando ainda há tantos países que negam aos mais velhos o direito ao trabalho, que soluções podem minimizar o impacto do idadismo, um dos preconceitos mais castradores da nossa sociedade?
“It strikes me that this may be one of the differences between youth and age: when we are young, we invent different futures for ourselves; when we are old, we invent different pasts for others.”
― Julian Barnes, The Sense of an Ending
Um dos livros mais marcantes que li nos últimos anos aborda o tema do envelhecimento, com grande humor mas também melancolia. O autor Paco Roca, na sua banda-desenhada Rugas (Bertrand Editora), descreve a vida de doentes internados num lar de terceira idade que procuram resistir, através da amizade, ao avanço do Alzheimer, ao tédio e rotina do quotidiano. São vidas no ocaso que enfrentam o desaparecimento da memória e nos brindam com uma insuspeita alegria de viver. É um livro encantador que nos força a enfrentar o mundo da terceira idade, esse universo que nos causa amiúde tanta apreensão.
Recentemente, cruzei-me com uma vizinha que me confidenciou que, este verão, ia cumprir o velho sonho de embarcar num cruzeiro às ilhas gregas. Surgira uma oportunidade imperdível e recusava-se a desperdiçá-la ‘só’ por ter 90 anos. Felicitei-a pela iniciativa e partilhei a história nas minhas redes sociais. A reação foi surpreendente e tornou-se uma das minhas partilhas mais virais. Como se a ideia de alguém com 90 anos concretizar o sonho de um cruzeiro às ilhas gregas fosse impensável. Como se uma senhora de 90 anos tivesse simplesmente de permanecer enclausurada na sua cidade, na sua casa, na sua cadeira ou cama, sem nutrir quaisquer esperanças pelo futuro, condenada a aguardar pelo declínio físico e mental.
Uma ‘praga’ silenciosa
A idade e o envelhecimento não são um assunto pacífico na nossa sociedade. A cada faixa etária está associado um conjunto de ideias preconcebidas e, para onde quer que olhemos, esse preconceito está inculcado em todo o lado, a ponto de não questionarmos muito do que vemos. Na publicidade, nos locais de trabalho, nas escolas e universidades, na televisão e no cinema, e também na linguagem que utilizamos no dia a dia, por vezes a um nível inconsciente (os mais velhos são logo associados a pessoas mais dementes ou de saúde debilitada). Fazemos com que os mais idosos velhos e acabados, sem pensar duas vezes. Mas o inverso também acontece. Fazemos com que os mais novos se sintam inseguros e imaturos e, com frequência, tratados com condescendência.
O idadismo — atitude preconceituosa e discriminatória com base na idade — tornou-se um elemento da nossa cultura tão insidioso como outras formas de discriminação, uma praga silenciosa que causa ansiedade de cada vez que celebramos mais um aniversário.
E mesmo na flor da idade, mesmo posicionados na faixa etária alegadamente ideal para concretizar as nossas aspirações, a pressão social é tremenda. Desenvolvemos um sistema de crenças que nos ensina, desde a infância, a definir toda a nossa vida numa curta janela temporal, entre os 25 e 45 anos, independentemente de estarmos ou não preparados, daí resultando uma (o)pressão psicológica que conduz não raras vezes a angústia e crise.
‘Late bloomers’
É difícil traduzir “late bloomers” para português, mas é uma expressão curiosa que, em termos literais, significa “florescer tardiamente”. Os denominados late bloomers concretizam numa fase mais tardia de vida o seu potencial, mas normalmente são vistos como uma anomalia ou a exceção, o que revela muito sobre a forma como a nossa sociedade ainda perceciona a realização pessoal e de como esta tem de estar associada à flor da idade.
Uma das nossas figuras culturais mais reverenciadas era um late bloomer. José Saramago publicou o seu primeiro romance aos 25 anos de idade, mas só voltaria a publicar aos 44 anos e grande parte da sua aclamada obra literária foi escrita e publicada a partir dos 60 anos, tendo recebido o Prémio Nobel da Literatura em 1998, aos 76 anos de idade.
Manoel de Oliveira, embora não possa ser considerado um tradicional late bloomer pois já era conhecido desde muito novo pela sua atividade cultural, só embarcaria por completo na carreira de cineasta, de forma regular, a partir dos 64 anos de idade. Continuou a trabalhar para além dos 100 e, à data do seu falecimento, com 106 anos, Manoel de Oliveira era o realizador de cinema mais velho do mundo no ativo.
Não por acaso, o escritor Malcolm Gladwell plasmou assim o seu sentimento: “No caminho para grandes feitos, o late bloomer irá parecer um fracasso.” É uma frase que deixa bastante clara a forma como facilmente irrompe esta ideia de “fracasso etário” se não cumprirmos as expetativas da sociedade na ‘altura certa’.
Idadismo no mercado de trabalho
Para além da discriminação baseada no género ou raça que tem vindo a ser exposta no mercado de trabalho, a discriminação baseada na idade, embora proibida por lei, também se infiltrou de muitas maneiras e tornou-se a norma.
Em Portugal, há cerca de dez anos, recordo-me com frequência de ler anúncios de emprego que estabeleciam os 35 anos como a idade limite para enviar currículos, cortando oportunidades de forma inexplicável a pessoas acima dessa idade. O que leva empregadores a definir os 35 anos como a idade limite para o trabalho senão o puro preconceito?
Em sentido contrário, nas eleições para a Presidência da República, só se podem candidatar cidadãos com mais de 35 anos de idade, estabelecendo a noção vaga de que só as pessoas com uma certa idade são adequadas para um cargo político, associando os indivíduos abaixo dos 35 anos a imaturidade e irresponsabilidade.
Ao ser confrontada com a realidade de menos oportunidades de emprego (sem ser pelas famigeradas “cunhas”), a população sénior sente-se desvalorizada, encarada como menos flexível e menos predisposta a aprender coisas, conduzindo a desemprego de longa duração.
Por sua vez, os jovens abaixo dos 30 anos sofreram as consequências da crise financeira de 2008 e posterior austeridade. É das gerações mais bem formadas e viajadas, com conhecimento de línguas e grande capacidade de adaptação, mas tem sido condenada à precariedade na forma de estágios que se perpetuam de empresa em empresa, e que procuram até ao limite recorrer a soluções temporárias.
Mesmo no meio académico, tem sido difícil para os mais jovens evoluir para além do sistema bolseiro, que apenas tem vindo a potenciar a precariedade e a impedir a plena integração e progressão de carreira de muitos investigadores. De formas diferentes, a discriminação etária tem vindo a afetar tanto idosos como jovens adultos, impedindo o igual acesso a oportunidades.
Este país é (cada vez mais) para velhos
Estatísticas recentes avançadas pelo INE indicam que se irá manter “o declínio populacional e o agravamento do envelhecimento demográfico” e que, em Portugal, até 2080, o número de jovens diminuirá de 1,4 para 0,9 milhões, passando o número de idosos de 2,2 para 2,8 milhões.
Numa sociedade cada vez mais envelhecida, caraterizada pelo aumento de esperança de vida e da idade de reforma, a fobia do envelhecimento torna-se um total contrassenso. A visão tradicional da idade avançada como sinónimo de decadência gradual, em que nos tornamos um fardo para a família, terá de ser contestada se não quisermos que a saúde mental sofra pesadas consequências.
Quando ainda existem tantos países que negam aos mais velhos o direito ao trabalho, sendo a faixa etária superior a 50 anos muitas vezes relegada para as margens, que soluções podem minimizar o impacto do idadismo, um dos preconceitos mais castradores da nossa sociedade? Urge mudar atitudes e práticas, e cabe a todos a responsabilidade de construir uma visão mais digna, positiva e saudável tanto da juventude como da terceira idade. Perante esta realidade, os empregadores e departamentos de recursos humanos também terão de adaptar-se aos desafios da nova demografia.
Iniciei este ensaio com uma referência literária e é adequado que termine com outra. O argentino Adolfo Bioy Casares retratou de forma admirável, em “Diário da Guerra aos Porcos” (Cavalo de Ferro), a distopia de uma sociedade em que os jovens concluem que a população sénior não contribui para a comunidade e decidem, portanto, livrar-se de todos os indivíduos com mais de 50 anos, dando início a um genocídio etário em Buenos Aires.
O ambiente sinistro que se instala e as atrocidades cometidas contra a população idosa dão lugar a um choque geracional de contornos kafkianos tenebrosos. Mas nem tudo são sombras. No meio da estranha loucura que se apoderou dos mais novos e dos conflitos interiores da personagem principal que tem medo de envelhecer, nasce uma história de amor entre uma jovem e um homem mais velho, que lhes permite esquecer por breves instantes o mundo de solidão, ódio e preconceito que se instalou à sua volta.