ARTIGO EM DESTAQUE – “Etarismo sexual: por que falar sobre tesão na velhice ainda é tabu”
AUTORIA: Luara Calvi Anic
Julgamentos, deboche, machismo e LGBTfobia tiram do idoso o direito a uma vida sexual plena. Por que temos tanta dificuldade em entender que nossos pais e avós também transam?
No filme “Boa Sorte, Leo Grande”, a atriz Emma Thompson interpreta Nancy, uma professora aposentada e viúva que está obstinada: irá em busca de seu primeiro orgasmo – coisa que nunca desfrutou, nem sozinha, nem com o marido, único parceiro sexual de toda a vida. Nancy contrata um garoto de programa, a quem entrega uma lista de desejos: quer dar e receber sexo oral, ficar de quatro na transa, entre outras práticas que o recato do falecido não permitia. O filme arrebatou a crítica em seu lançamento, no Festival de Berlim, em 2022, por abordar com extrema delicadeza um tema raramente tratado não só no cinema, mas na sociedade: a sexualidade na velhice.
O fato de Hollywood se debruçar sobre o assunto é sintomático de um mundo que se vê cada vez mais obrigado a falar sobre o envelhecimento sem tabus. Pesquisa do Census Bureau, departamento do censo norte-americano, prevê que em 2050, 17% da população do planeta terá mais de 65 anos – há sete, esse número era de 8,5%. Por aqui, segundo IBGE, a quantidade de brasileiros sexagenários aumentou 41,6% na última década. Um salto gigantesco e inversamente proporcional ao etarismo de um país que se acha mais jovem do que realmente é.
“O Brasil sempre considerou a juventude um capital. Os velhos ficavam dentro de casa ou não viviam tanto. Hoje a expectativa de vida é maior e é possível ter mais saúde e prazer. Mas os valores culturais não se alteraram com a mesma velocidade dessas mudanças”, explica a antropóloga Mirian Goldenberg, autora do livro “A Arte de Gozar – Amor, Sexo e Tesão na Maturidade”. “Quando uma pessoa com mais de 60 exerce ou manifesta sua sexualidade, ainda pode sofrer preconceito e estigma. Vai ser a ‘velha assanhada’, o ‘velho safado’.”
Muitas vezes, essas pessoas não desenvolveram um bom repertório sexual ao longo da vida, têm dificuldade até para se masturbar e não encontram espaços para falar sobre isso.
Muitas vezes, esse etarismo sexual se dá no próprio ambiente familiar, quando o idoso quer ter um novo parceiro ou mesmo relações casuais após uma separação ou viuvez. Socialmente, o velho é visto como alguém que já viveu tudo o que tinha que viver e, por isso, deve se doar. “Um avô ou avó sexualmente ativo, que quer namorar, aproveitar a vida e preservar sua individualidade deixa de ficar disponível para os parentes”, afirma a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da USP . “Muitos ainda ajudam os filhos financeiramente ou são incumbidos de atividades no lar, como cuidar dos netos e da casa.”
Carmita também cita os casos em que as demandas sexuais na maturidade são cerceadas pelos filhos por conservadorismo ou excesso de reverência ao passado. “É aquela história do ‘ninguém vai ocupar o lugar da minha mãe ou do meu pai’, quando o idoso decide se relacionar com alguém novo.”
Além da pressão familiar, há os desafios próprios da terceira idade. O corpo já não tem o mesmo vigor e manter a ereção no caso dos homens e a lubrificação, no das mulheres, é mais difícil. E aí, para evitar o constrangimento de um mau desempenho na cama, há quem abra mão do prazer. “Do lado feminino tem ainda os padrões de beleza. Se eles são aprisionantes na juventude, imagine lidar com as inseguranças de um corpo com mais rugas, estrias e marcas naturais do tempo”, diz a psiquiatra.
Para o geriatra Milton Crenitte, especialista em longevidade e sexualidade, falta também acolhimento nos consultórios médicos para que os idosos possam falar de suas vivências e angústias nesse campo. “Nosso corpo é uma potência capaz de nos dar prazer em qualquer fase da vida. Não é porque envelheceu, que não se pode mais ter aprendizados. É possível redescobrir onde gostamos de ser tocados, quais são nossos desejos e como acessá-los na terceira idade”, afirma Crenitte. “Muitas vezes, essas pessoas não desenvolveram um bom repertório sexual ao longo da vida, têm dificuldade até para se masturbar e não encontram espaços para falar sobre isso.”
Etarismo e LGBTfobia: tabu em dobro
A terapeuta sexual Ana Canosa ministra cursos de pós-graduação em sexologia clínica há 7 anos. Ela exemplifica esse etarismo sexual da classe médica citando o pouco interesse dos especialistas em envelhecimento nesse tipo de especialização. “Nunca tive um aluno geriatra em meus cursos. Na maioria dos casos são ginecologistas interessados em ampliar conhecimentos sobre sexualidade feminina. Em um número bem menor estão os urologistas, talvez porque já existam recursos fármacos para tratar a ereção”, avalia a sexóloga.
Quando se trata de um idoso que não é heterossexual o tabu é duplo. “O envelhecimento dessa população está fora do radar tanto dos movimentos que militam pelos direitos do idoso, quanto dos LGBTQIAP+”, explica Crenitte, que, além de geriatra é voluntário da Eternamente SOU, uma organização que apoia o público LGBTQIA+ com mais de 50 anos. O geriatra cita a falta de acesso aos serviços de saúde como uma das consequências do etarismo.
“Recentemente pesquisei um grupo de mulheres com mais de 50 anos a respeito da realização de mamografia. Cerca de 80% das heterossexuais já haviam feito e somente 38% das lésbicas. A causa disso eram experiências negativas prévias, como não se sentirem respeitadas dentro da sua identidade nos laboratórios e hospitais”, afirma Crenitte. “Se essas pessoas vão menos ao médico por não se sentirem seguras ou para evitar constrangimentos, elas ficam menos à vontade ainda para abordar questões relativas à sexualidade.”
Tesão para além do sexo
Indiferente ao etarismo, para muitas pessoas o interesse pelo sexo deixar de existir na maturidade é algo natural. Isso não significa necessariamente uma disfunção ou que já não exista mais prazer. É o que defende Mirian Goldenberg. “Vejo mulheres e homens que perdem a libido e não sentem mais vontade de transar, mas que têm tesão em novos projetos, em viajar, em estar com os amigos, de experimentar um vibrador. Tesão é algo que vai além do sexo genital com um parceiro”, diz a antropóloga.
Há também uma mudança natural de prioridades com a passagem dos anos, como coloca Canosa. “Quando a gente é jovem, a sexualidade é uma busca: você quer se desenvolver, experimentar, ter vários parceiros, testar. Na terceira idade, sexo e mais orgasmos deixam de ser uma busca para muitas pessoas e está tudo bem”, explica a sexóloga.
Para além da falta de inclusão social, dentro da própria comunidade há formas cruéis de etarismo sexual – especialmente entre os homens. “O gay com mais de 50, que não tem um parceiro fixo, é encarado de maneira jocosa. É a ‘bicha velha’, a quem não é permitida uma vida sexual”, explica Canosa. “Nesse sentido é algo muito parecido com o que acontece com as mulheres héteros, que também são mais colocadas no campo do ridículo. Do tipo: ‘por que essa velha assanhada ainda quer transar?’”, exemplifica.
Tenho visto cada vez mais idosas se permitindo ter prazer com pessoas do mesmo gênero, depois de uma vida inteira de heterossexualidada.
No entanto, enquanto para alguns essa busca não é mais prioritária ou deixa de existir, para outros ela passa por uma mudança de rota. Especialmente no caso das mulheres. “Tenho visto cada vez mais idosas se permitindo ter prazer com pessoas do mesmo gênero, depois de uma vida inteira de heterossexualidade. Não diria que se trata de uma descoberta de orientação sexual tardia, mas de uma fluidez maior que a dos homens”, diz Canosa. “Já se passou da menopausa, aquele estrogênio não está mais bombando. Então o interesse é muito mais afetivo. Um pensamento recorrente é: ‘por que não se abrir para uma mulher que é muito mais parecida comigo no sentido de partilha e intimidade?’”
Já Crenitte explica que “saídas do armário tardias” podem ocorrer após o indivíduo se ver aposentado, com filhos criados e enxergar naquele momento, em que deve dar menos satisfação social, uma última chance de viver a sexualidade de forma plena. “Essas pessoas já passaram por um sofrimento mental muito grande ao longo da vida e precisam ser respeitadas e ouvidas. Independentemente de ter 90 anos, se está transando ou não, ela vai continuar sendo quem ela é e não deve ter sua história apagada pelo preconceito.
FONTE: https://gamarevista.uol.com.br/