A idade da reforma, idadismo e a justiça entre as gerações[1]
Temos de lutar em conjunto por um futuro melhor para todas as idades e para garantir o mesmo tipo de direitos sociais que caracterizam a Europa que conhecemos e defendemos até agora.
A Constituição portuguesa é muito explícita na proibição de vários tipos de discriminação, incluindo aquela com base na idade (artigo 59.º): “todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convições políticas ou ideológicas têm direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização social e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar”. A directiva europeia de antidisciminação em relação à idade no emprego (Directiva 2000/78/EC) e o código do trabalho (artigo 24.º) procuram estabelecer também limites claros a este tipo de discriminação.
Infelizmente a existência destas leis não parece ter tido até ao momento grandes consequências para a forma como os trabalhadores de diferentes idades são tratados no nosso mercado de trabalho. Um exemplo importante é o da imposição de limites de idade para a reforma no sector público. Ainda no contexto actual, um trabalhador público, independentemente da sua formação, especialização, condição física ou competências, tem de abandonar o seu posto de trabalho no dia seguinte em que completa 70 anos. Para muitos este não seria certamente o presente de aniversário mais desejado.
A imposição de um limite etário para a reforma dos trabalhadores é claramente uma infracção às directivas antidiscriminação porque assume a idade cronológica como o único indicador que determina a capacidade do trabalhador para exercer as suas funções. Ainda recentemente o médico John Beard, da Organização Mundial da Saúde, escrevia num artigo do jornal Lancet que “as variações no funcionamento ligadas ao envelhecimento não são nem lineares nem bem definidas… em muitas partes do mundo, a política parece assumir uma divisão do curso da vida numa série de estágios baseados na idade cronológica e nos papéis sociais – tipicamente estudante, idade ativa e reforma – que têm pouca base fisiológica… mas são exacerbados pelos estereótipos etários de fragilidade e diminuição mental”.
Sendo assim não deveriam existir dúvidas de que, à semelhança do que sucede em vários países (como, por exemplo, nos Estados Unidos ou Reino Unido), este limite deveria ser abolido. As negociações que estão em curso na sociedade portuguesa neste momento parecem ir neste sentido. A abolição da idade da reforma tem vantagens para além do respeito pela constituição e direitos humanos. Num cenário de envelhecimento demográfico marcado, esta medida constitui um alicerce fundamental para a promoção de uma sociedade europeia mais competitiva e com mais crescimento económico.
No entanto, e como em tudo o que é complexo, uma acção desta natureza tem várias repercussões que não podem ser esquecidas. Neste contexto, surgem duas questões cruciais e que exigem respostas reflectidas. A primeira questão que se coloca é: como podem os trabalhadores continuar a trabalhar mesmo que queiram? Uma segunda questão, que é absolutamente inevitável, é a seguinte: quais são as consequências desta decisão para as gerações mais jovens e para a justiça entre as gerações?
A resposta à primeira questão exige que pensemos no modo como as pessoas mais velhas são habitualmente tratadas nas suas sociedades. Existem várias evidências da existência de idadismo e de práticas discriminatórias em relação às pessoas mais velhas no mercado de trabalho. No contexto nacional, um estudo realizado em 2004, pelo Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), mostrava que os portugueses em geral viam os trabalhadores mais velhos como tendo “pouca capacidade e interesse para aprender” e “pouca capacidade de adaptação a novos métodos”. Os inquéritos mais recentes parecem apontar para algumas melhorias. Por exemplo, segundo dados do Eurobarómetro de 2015 69% dos portugueses afirmava sentir-se “totalmente confortável” em trabalhar com colegas com 60 anos de idade. Estamos, de qualquer modo, ainda longe dos 90% de suecos, ingleses ou franceses que partilham esta mesma opinião.
Em suma, o idadismo contra os trabalhadores mais velhos é ainda uma realidade no nosso país significando que, mesmo que os trabalhadores mais velhos portugueses queiram continuar a trabalhar irão, com toda a certeza, encontrar barreiras significativas a essa intenção. Torna-se, assim, urgente identificar formas de combater esta forma significativa de exclusão na nossa sociedade.
A segunda questão que coloquei refere-se à defesa da justiça entre as diferentes gerações. Num cenário de crise económica profunda como aquele que atravessámos nos últimos anos, onde o desemprego e a precariedade jovem é uma realidade preocupante em vários países europeus, é natural que muitos pensem como equilibrar os desejos de continuação laboral dos mais velhos com a criação de oportunidades adequadas à progressão dos jovens. Um relatório de 2017 da Cáritas mostrava dados muito preocupantes em relação aos jovens europeus e, em particular, em Portugal. Os jovens portugueses recebiam, em média, 695,18 euros por mês, menos 346,22 euros do que um trabalhador entre os 35-44. A grande maioria tem situações laborais muito precárias que passam por estágios e “recibos verdes” sem qualquer tipo de garantia social. Em 2015 o risco de pobreza de um trabalhador jovem era de 10%.
Face a esta situação dramática, uma das medidas propostas é a criação de mais e melhor emprego para os jovens. Aqui a questão que se coloca no âmbito da presente discussão é se este emprego passa pela reforma das pessoas mais velhas. Desde há muito tempo que os economistas defendem que não existe entre estas medidas uma relação directa. Esta ideia de que é preciso que saiam uns para entrarem outros chama-se habitualmente “a falácia do pulmão” por analogia com o ar que entra e sai dos pulmões. Do ponto de vista económico a questão não é linear até porque a manutenção de pessoas mais seniores em certos postos de trabalho pode inclusivamente ser a base para a criação de novas oportunidades que beneficiam também os jovens. No entanto, existem excepções que são muito importantes de considerar. Em organizações de trabalho particulares “mais fechadas e hierárquicas”, como algumas instituições públicas, onde a progressão dos mais jovens depende da reforma das pessoas mais velhas, a situação da injustiça intergeracional coloca-se de forma genuína. Aliás, a directiva comunitária antidisciminação face à idade no trabalho assume que a justiça entre as gerações no acesso às oportunidades do emprego é um motivo crucial a considerar no momento de gestão da força de trabalho numa organização. Nestes casos em particular, é necessário ponderar o equilíbrio entre as condições de todos os envolvidos.
O envelhecimento demográfico é um ganho civilizacional importante e deve ser tratado como tal. Uma vida com mais anos exige ajustamentos que poderão passar por vidas laborais mais longas. No entanto, o modo como estes ajustamentos serão feitos não pode ser leviano. A situação é complexa e exige um pensamento também complexo. Temos de lutar em conjunto por um futuro melhor para todas as idades e para garantir o mesmo tipo de direitos sociais que caracterizam a Europa que conhecemos e defendemos até agora.
Sibila Marques
Psicóloga Social; professora no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)
[1] https://www.publico.pt/2018/09/03/economia/opiniao/a-idade-da-reforma-idadismo-e-a-justica-entre-as-geracoes-1842667